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Um parque chamado Lauro
Walmira Gonçalves Fernandes
Jornal Correio da Paraíba, domingo, 12 de setembro de 1993
Nenhum de nós, que estivemos muitas vezes iluminadas pela luz tranqüila do seus olhos (era uma luz verde) e ouvindo o que ele, em voz baixa e pausada, nos ensinava, poderá esquecê-lo. Corria o ano que ainda não terminou e as, de alguma forma, apaixonadas pela Terra, se sentavam todos os dias tentando desvendar os seus segredos. Estávamos todas em boa companhia. Se existiu alguém completamente apaixonado por este, ainda (até quando?), Planeta Azul, era o professor Laurinho Xavier. Ninguém conseguia evitar o diminutivo, que era pura ternura pela pessoa, uma das maiores que a história da Paraíba teve a alegria de registrar. Apaixonada pela paixão de professor Laurinho, a Terra, e pela capacidade que ele tinha de nos “mesmerizar” durante suas aulas, muitas vezes desci do ônibus três paradas antes da Faculdade. Para ter certeza que me encontraria mais cedo com o mestre e com ele caminharia os metros que nos separavam da sala de aula. Professor Laurinho era um entusiasta dos “peripatéticos” e lá íamos nós, passo a passo, estudando o que quer que se relacione com a frágil crosta que recobre os sons e a fúria dessa que “eppur si muove”...
Eu não achava possível que uma pessoa pudesse se identificar a tal ponto com o verde, que sentisse na carne a dor de uma ferida numa árvore, até o dia em que eu o vi. No caminho, nós encontramos uma daquelas centenárias árvores da Avenida Epitácio Pessoa, ferida recentemente, ainda com a seiva escorrendo e os pedaços do tronco no chão. A maneira como ele acariciou a árvore, enquanto se perguntava baixinho “por quê? Para quê?”. E tentava colar os pedaços destacados do tronco, dificilmente se distinguiria da forma como com que as mães fazem os curativos nos joelhos feridos dos filhos. O carinho e a dor que sentem, na simbiose, são os mesmos. Ainda cheguei a perguntar se era “mortal” e ele me respondeu: “Pode ser, Boticelli”. Apelido da faculdade por conta do meu amor pelo Renascimento e nossas redondezas... “Pode ser, continuou. As árvores são como as pessoas. Você pode feri-las no corpo e elas sobrevivem. Mas, quando o ferro alcança a alma, é difícil. A alma das árvores viaja pelo seu sangue”.
Professor Laurinho me pareceu tão desprotegido, ali, tentando colar as cascas da árvore agredida... Era só aparência. Não existia ninguém tão forte, por baixo daquela voz suave e um sorriso eterno da ilusão do avô, que cada um de nós guarda da infância que se foi. Algumas vezes chegávamos uns minutos atrasados. Poucas. Mas é que sempre havia uma folha surgindo novinha de algum arbusto, uma flor que acabava de cair, uma formação diferente nas nuvens, a chuva que ficava mais forte no sol de verão... Coisas assim, que para professor Laurinho eram milagres sempre renovados de um cotidiano que uma grande maioria das pessoas já não consegue mais enxergar.
Essas lembranças todas me vieram a tona quando li que, depois de Paris, João Pessoa foi considerada a segunda cidade mais verde da Terra. Acho que era o tipo de notícia que ele gostaria de ter lido, depois do café da manhä com a família, antes de partir para ensinar. Mestre Laurinho gostava de lembrar que, quanto mais nós nos afastamos de quem nos originou (“somos feitos da mesma matéria das estrelas, Boticelli!”), mais nos afastaremos do único objetivo para o qual estamos destinados – ser humanos. Depois das aulas, costumávamos ficar conversando sobre o segredo cósmico da semente. “Sabe, nesta noz estão contidas todas as nogueiras que já existiram e todas as que virão a existir”. Gostávamos de estudar os abismos. Os abismos do mar e seus estranhos peixes fosforescentes, que jamais veremos porque não resistiram a subida para o calor. Nem nós, a descida para as trevas líquidas. Nunca perdi uma única aula do professor Laurinho. E sempre me colocava nas cadeiras atrás. Para ouvi-lo melhor.
As pessoas que tem consciência do que estão transmitindo nunca precisam elevar a voz. Ele tinha absoluta consciência de que estava ensinando a todas o segundo maior amor da sua vida – a Terra. Era um prazer encontrá-lo na rua, ele e seu inseparável boné. Nós tínhamos a impressão que o usava como quem usa um par de óculos. Para ver melhor. Todos os anos, quando há aquela explosão de ouro no chão, formada pelas flores que caem das acácias, ele sempre se lembrava de perguntar se já tínhamos ido assistir a “chuva dourada na cidade”. É fácil imaginá-lo percorrendo as trilhas amarelas, ao cair da tarde, como quem vê e ouve um milagre. Para Mestre Laurinho, tudo que é da Terra lhe pertence.
A nós, apenas nos é emprestado por alguns dias, meses, anos. Tudo que vai no mar, o mar devolve. O que lhe tiram, se quiser, vem para buscar. A Terra nunca nos pertenceu, nem nos pertencerá. Nós é que a ela pertencemos, dela vivemos e para ela, inexoravelmente, voltaremos um dia. Mas a forma com que ele nos dizia isso era de tal clareza e ternura que, o que a muita gente parece ser o fim – a morte, para nós parecia ser sempre um recomeço. Um iniciar outra vez, como o dia que nasce. Quem quer que passou pelos seus ensinamentos, deles não saiu o mesmo. Mudou para sempre a forma de se relacionar com o quer que se mova, porque “tudo que se move é sagrado”. Professor Laurinho hoje se confunde com o vento que sopra, a folha que cai, a chuva que lava, o brilho do sol. Transformou-se, afinal, na luz verde que emanava dos seus olhos. Espalhou-se para todo o universo que conhecemos. Daqui até Alpha Centauro A. Onde há água. E, possivelmente, Vida.
É por isso que tenho a impressão de que falta alguma coisa na segunda cidade mais verde do mundo. Andando pelas suas ruas, mesmo imaginariamente, num dia calmo de maio, penso que em algum recanto existem árvores acabadas de plantar, que um dia serão carvalhos. Ou acácias. Alguns bancos de pedra para sentar e ouvir as cigarras. Ou pensar na Vida. Crianças, pessoas, pássaros. Enfim, um Parque Chamado Lauro...
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