domingo, 11 de outubro de 2009

MÍDIA

MURILO RONCOLATO


Desde que foi criada a Free Software Foundation, em 1985, por Richard Stallman, o modelo livre de negócio para software segue ampliando seu alcance e, hoje, está mudando as formas de relacionamentos sociais, culturais, comerciais e econômicos. Entretanto, especialista no assunto, aponta para a necessidade de incentivos e regulamentação para o setor.

Software livre é o nome dado para programas registrados sob uma das licenças copyleft, contraposição do copyright, e que, por ter seu código-fonte aberto – texto que contém a inteligência do software –, permite que qualquer pessoa execute o programa, conheça sua estrutura tecnológica, modifique e distribua livremente cópias da versão adaptada.

O sociólogo Sérgio Amadeu da Silveira, militante do movimento por software livre, acredita que o modelo colaborativo já se mostra mais eficiente que o fechado, conhecido como software proprietário. Ele aponta, por exemplo, a Microsoft, que trabalha com plataforma fechada, e afirma que sua forma de negócio está perdendo força nos Estados Unidos e já não tem "a mínima condição de ficar de pé".

Para acompanhar este cenário é imprescindível políticas de inclusão digital. Lançar o povo brasileiro na rede, faria com que regiões "do século 19" do Brasil "se transportassem para o século 21", segundo o professor.

Em entrevista exclusiva à Agência Dinheiro Vivo, Sérgio Amadeu explica tudo sobre software livre, as consequências do modelo no mundo, defende a necessidade de uma política pública de inclusão digital e faz dois pedido ao presidente da República.

Confira a entrevista.


DV - Qual a diferença entre o software Livre e o software Proprietário? Essa distinção não se refere a características do produto, mas a regimes jurídicos de uso. É isso mesmo?

Sérgio Amadeu - O software livre é um novo modelo de uso, baseado nas práticas colaborativas entre comunidades de desenvolvimento,que possibilita que qualquer indivíduo tenha acesso ao código-fonte do software, podendo estudá-lo e alterá-lo. Sua tecnologia é aberta. A inteligência do software é inscrita no texto, o código-fonte, que diz quais são suas rotinas e que vai junto com o código-executável. Então, a qualquer momento, qualquer usuário de software livre, seja ele uma pessoa física ou uma empresa, pode ter acesso completo, vendo o que o software tem nele, o que ele pode fazer ou deixar de fazer. Ele é completamente transparente e permite compartilhamento total do conhecimento sobre ele.

E tem a questão das licenças...

Tem vários tipos de licença. Por exemplo, a GNU/GPL (General Public License), que não permite que um código feito colaborativamente seja apropriado privadamente.

O usuário não pode pegar o software livre e vendê-lo?

Pode até vender, mas não pode fechar o código. Ele não pode transformar o código de aberto em fechado. A licença GPL tem uma restrição, portanto. A licença copyright é restritiva na alteração e compartilhamento de software. O GPL inverte e faz o copyleft, uma licença com a qual qualquer pessoa pode ampliar, estudar completamente o software, alterar e distribuí-lo. São as quatro liberdades para um software ser considerado livre: a de executar o programa; estudá-lo; modificar e redistribuí-lo. Em uma GPL, se você fizer essas alterações, criar linhas de códigos a mais em cima das existentes, o software deve continuar com as quatro liberdades. Isso é pra evitar o que acontece com outros programas. Por exemplo, o sistema operacional livre FreeBSD. Ele tem as liberdades, mas não tem as restrições de apropriação, ou seja, muita gente pega o software aberto, altera e não o devolve alterado para a comunidade. A própria Apple, o sistema operacional da Macintosh, usa códigos do BSD, se apropriando do trabalho coletivo, e fecha o código.

Há diferenças entre software livre e open source. Quais são?

O open source surge numa tentativa de retirar essa dimensão mais ideológica do software livre, que veio com o [Richard Matthew] Stallman. Existe muita proximidade na prática entre o software livre e o open source. O open source pode não ser livre, ele não permite que você altere e nem distribua; o código-fonte dele é aberto, mas ele continua impedindo que as pessoas tenham a liberdade de manipular, trabalhar o conhecimento contido no programa. Já é uma grande coisa deixar o código aberto, sem dúvida, mas, no fundo, você tem algumas diferenças, que estão cada vez menores. No open source surgiu uma expressão que é Floss (free/libre open source software) isso foi feito pelo Rishab [Aiyer Ghosh], que é um indiano que criou essa expressão para dizer que não tem tanta diferença entre os modelos e que as pessoas atuam em conjunto, na prática.

Você acredita que o modelo livre tenha modificado a forma de negócio de software no Brasil e no mundo?

Muita gente migrou para o padrão de rede que trabalha com a idéia da plataforma livre. Os softwares baixaram de preço muito fortemente no mercado, exatamente pela pressão do software livre. Ele tem viabilizado uma saudável competição, coisa que não existia antes na plataforma proprietária. Cada vez mais o software livre avança no ambiente empresarial, principalmente numa estrutura de rede e avança também dentro da rede. Se você pegar os 10 maiores portais do mundo mais da metade utiliza software livre. A plataforma do Google é principalmente baseada em Linux, que é livre, do Wikipedia é um software livre, do Wordpress, também. A plataforma principal da rede é em software livre e a tendência é essa. No ambiente das redes colaborar é muito mais eficiente que competir. O modelo de negar acesso é ultrapassado. Qual o navegador que tem mais aplicativos? O Firefox. Porque o código-fonte dele é aberto e todo o mundo pode criar em cima. Como a licença dele permite visualizar os códigos, se você cria em cima, você tem que devolver o código criado. Então, há jovens talentosos no mundo inteiro criando uma API [Interface de Programação de Aplicativos] para o Firefox se comunicar direto com o Twitter, por exemplo. Isso, que o menino desenvolveu lá na Ásia, na Oceania, fica disponível pra todo o mundo. A produção de código aberto, que é principalmente comunitária, é infinitamente mais barata e superior que a produção do modelo proprietário. Óbvio que o modelo proprietário tem uma mega estrutura de negócio que impede as coisas de caminharem com rapidez, porque tem muita gente que ainda vive de licença de propriedade, mesmo sendo anacrônico. Mas há também empresas como a IBM que hoje vive praticamente de serviços. Ela tem alguns produtos com licença de propriedade, mas o grosso dela vem de relacionamento.

Uma plataforma livre garante mais segurança que uma fechada?

Tem um algoritmo, muito importante, chamado RSA. É um algoritmo de criptografia de dados com mais de 20 anos de vida, usado para criar chaves e assinaturas digitais, por exemplo; sendo usada para compra online, acesso a contas de bancos pela Internet, etc. Ele é aberto e, portanto, todo o mundo tem acesso a esse algoritmo, logo sabe-se como funciona. O fato de ser aberto não significa que ele seja frágil, pelo contrário, é robusto, forte. O fato de ser aberto possibilita que todos saibam o grau de segurança desse algoritmo. Tanto eu como qualquer pessoa pode olhar o algoritmo e descobrir falhas. Falando no caso dos softwares: não é o fato de eu ter acesso ao seu código-fonte que ele se torna violável; na prática, isso possibilitará vigilância sobre o programa. O usuário sempre vai ter liberdade plena sobre o código do software. Ao contrário do software proprietário, no qual só o dono sabe as rotinas daquele programa, porque ele só entrega o código-executável e não o código-fonte. O usuário nunca vai poder auditar o software, nunca vai poder descobrir se há erros, portas de entrada escondidas, fragilidades muito graves, etc. Sobre o livre, por exemplo, a cada versão do Linux existe um processo de “debugagem”, retirada de erros, que é feito coletivamente. Muitas pessoas olham e têm condição de agir e consertar aquele erro. São olhos de culturas diferentes que podem ver coisas muito diferentes. O que é aberto é o código-fonte, uma vez que copiado e transformado em código-executável, não há como quebrar, na verdade, ele tem uma solidez muito grande. Um código-fonte fechado é para o usuário uma incógnita, e por usuário entenda-se o governo, empresas. Eu não posso usar um software sem saber quais são suas rotinas, o que tem dentro dele. Isso é tão verdadeiro que levou a Microsoft a abrir o código-fonte para os governos, mas ela abriu parcialmente, o que é um problema, porque 2% do que ela não abriu pode ter todos os problemas do mundo. O modelo de código fechado é, por definição, inseguro; eu falo do modelo. Isso não quer dizer que todo software livre é seguro, mas, sim, o seu modelo.

É correto dizer que software livre nunca será a regra, mas sempre o contraponto do sistema comercial de softwares, algo paralelo? Há uma "esperança" de que a plataforma livre acabe com a proprietária?

Eu acho que o software livre na rede é a regra. A Internet é livre. Todos os protocolos que a compõem são livres e desenvolvidos compartilhadamente. Veja os modelos que estão na rede hoje, veja os meninos do Google. No caso do Brasil você pode estar vivendo uma etapa. A tendência é as pessoas viverem de serviços, assistência técnica, desenvolvimentos e permitir que o conhecimento seja compartilhado.

Então o dinheiro desse novo mercado viria justamente da prestação de serviço?

Pensando na minha profissão, de professor, eu não vivo da propriedade do meu conhecimento. Pelo contrário, cada vez mais eu quero que as minhas idéias fluam pela rede, porque isso me dá mais prestígio, mais força, mais condição de, ao mesmo tempo, pesquisar, obter recursos e também de obter alunos interessados na minha matéria. Não é um bloqueio do conhecimento, é a divulgação, a disseminação que a rede permite. Você pode estar contra essa natureza, que é uma rede de comunicação relógio, e aí você monta uma rede que quer bloquear a disseminação de conteúdo. Eu diria que é uma esquizofrenia.

A recente abertura das grandes empresas de software como Microsoft e Adobe, que passaram a liberar alguns APIs, pode ser considerada uma vitória por parte do movimento do software livre?

Não sei ainda se dá para comemorar, sou cético com isso. Eles tentam fazer operações de marketing na verdade. Eles veem a força do movimento de software livre. Algumas empresas de TI abandonaram o modelo de licenças de propriedade e partiram para serviços, tipo IBM, que migrou seu modelo; e o Google, que já nasceu aberto, apesar de este ainda ter coisas proprietárias, mas é mais por segredo de negócio do que por licença. Está tudo cada vez mais baseado em serviço, em relacionamento, que é a palavra correta. A Microsoft sempre abriu API, a todo instante eles tentam fazer uma operação para tentar sobreviver com um modelo do mundo industrial em um cenário de mudança informacional.

Como fica a questão da proteção intelectual?

A gente usa a legislação de copyright para fazer princípios do copyright, a gente chama "hackear o copyright". Se a licença do copyright não permite copiar, nós usamos a lei deles para escrever uma licença que permite o compartilhamento e mudanças. A GPL, por exemplo, mantém a autoria do software, o que não é ruim, mas ela permite que eu pegue um pedaço desse software e faça um outro.

O que o modelo livre traz de benefícios para o país pensando em termos econômicos?

No mundo, o software proprietário tem pouca força. O Brasil recentemente ganhou prestígio porque começou a desenvolver plataformas abertas. O software livre é o caminho pra que se possa construir empresas que se relacionem com empresas de outros países e usem a capacidade de trabalhar a inteligência coletiva para fazer ações, serviços de TI em outros lugares. Agora, se a gente for vender licenças de propriedades, isso já não deu certo antes e não dará agora. O caminho é exatamente o de incentivar a rede de software livre, em código aberto, e apostar na nossa inteligência coletiva, na nossa capacidade de prestar serviços.


E em relação a empregos. Abre um campo para novos trabalhadores, mais empresas?

Uma empresa pequena, existem várias, pode pegar um código do Linux e customizar para grandes empresas que vão ter vantagens por reduzir custos de licença, vão ter um software mais robusto, mais seguro, por ser um código aberto. Quem é que vai ganhar dinheiro com isso? Só a grande empresa? Não. Centenas, dezenas de empresas pequenas locais que podem se especializar nisso. Vamos dizer que você é uma grande empresa, certo? O modelo proprietário vende licenças de usos, então, você vai comprar um software com licença proprietária. Você não vai ter acesso ao código-fonte desse software, por isso ele vai ser sempre da empresa que o produziu. Isso é uma grande desvantagem para você. Por isso que o modelo de software livre é extremamente vantajoso para a empresa, porque se faz o desenvolvimento e o código-fonte fica na mão da empresa que adquiriu. Se na próxima versão você não quiser mais trabalhar com aquela empresa que desenvolveu, mas quiser outra, você tem o código-fonte para continuar, porque você pagou pelo código. O software livre é muito vantajoso para o usuário. Por isso você vê que quem está se dando bem no mundo das redes é quem está apostando no serviço e no relacionamento. O próprio jargão Web 2.0 denota isso, que são as práticas colaborativas e as ferramentas que podem se comunicar entre si de todas as formas possíveis, a interoperabilidade, a comunicabilidade plena, mashup, e a colaboração. Tem até um livro de economia que o Don Tapscott [em parceria com Anthony D. Williams] lançou que é o Wikinomics, mostrando a força dessa prática colaborativa que está no software livre.

Eu gostaria que você comentasse a questão dos telecentros, criados quando você trabalhava na prefeitura de São Paulo, durante a gestão Marta Suplicy, e explicasse de que forma exatamente o software livre pode servir para uma inclusão digital.

A inclusão digital é vital para o nosso país porque permite romper com os processos de produção da miséria. Ela traz para um lugar muito periférico o acesso a informações que podem virar conhecimento. Ela liga essas comunidades pauperizadas a todo uma série de oportunidades que existem no mundo. E, então, se isso é um passo importante, isso tem que virar política pública, não pode ser uma coisa eventual, uma operação de marketing de uma gestão. Eu defendi a inclusão digital como uma política e também que cada esfera do Estado (federal, estadual, municipal) deveria ter um papel claro de inserir comunidades carentes na rede. Logo, se a gente vai informatizar o Brasil – e mais da metade da população não está informatizada –, vai se estender as garras de um monopólio de software ou vai se informatizar o país com condições de autonomia, espalhando a capacidade de criação da inteligência e de desenvolvimento de um software local, a partir do código-fonte aberto? Por isso é que eu digo que a inclusão digital autônoma - que não é simplesmente a criação de mercado para multinacionais venderem licença de software aqui - deve ser feita com software livre. E isso tem dado muito certo e tem feito com que muitos jovens talentosos que, por estarem lá usando e tendo acesso aos códigos-fonte de softwares, de maneira que não aconteceria com o outro modelo, produzam muitas coisas interessante, coisas fantásticas.

No seu livro “Exclusão Digital” de 2001 você fala em determinado momento que “não é correto classificar a exclusão digital como mera consequência da exclusão social” e depois em uma entrevista para o extinto NoMínimo que “A exclusão digital é um agravante da exclusão social”. Afinal, dá para relacionar um com o outro e estabelecer uma relação de prioridade?

O que eu diria hoje, depois de oito anos da primeira edição desse livro, é que deu para perceber que fatores sócio-econômicos levam a uma grande parte do povo brasileiro não ter acesso à rede, a uma máquina, a não ter acesso à comunicação digital. Não é um fator cultural, religioso, nada disso; é um fator sócio-econômico. Isso é a origem do que nós chamamos de exclusão digital. Por outro lado, a exclusão digital é extremamente grave porque ela pode ter a mesma consequência que tem o analfabetismo para a nossa sociedade. Explico: ela pode criar diferenças cognitivas. Há uma grande diferença cognitiva entre quem é alfabetizado e quem não é. Isso agrava a desigualdade social. Eu faço um paralelo com as redes: as pessoas que não estão associadas a redes digitais de comunicação, passam a ter uma grande diferença em comparação com quem tem acesso e habilidade nas redes. Isso amplia a desigualdade social e econômica. Por outro lado, se você dá condições do conjunto da nossa sociedade se conectar, fica mais fácil enfrentar as desigualdades sociais, fica mais fácil manter a diversidade cultural, garantir materiais educacionais amplamente distribuídos. É o que eu chamo de elementos vitais para romper o processo de reprodução da miséria. Eu não estou dizendo que as pessoas só vão trabalhar com rede. Eu estou dizendo que cada vez mais qualquer tipo de trabalho pode ser melhorado e otimizado a partir das redes. Ou o trabalho em si ou os conhecimentos vitais sobre aquele trabalho.

No mesmo livro, você escreveu que “O grande desafio é enfrentar a herança do analfabetismo funcional ao mesmo tempo em que combatemos o Apartheid tecnológico. Alegar que primeiro se erradica um para depois enfrentar o outro é um erro primário”. Qual a maneira que você julga ser a mais correta para enfrentar as três exclusões – a digital, a social e a educacional – sem necessariamente hierarquizá-las?

Eu acho que em primeiro lugar a gente teria que ter uma política pública para isso. Eu não acredito só no mercado, eu acredito em políticas. Uma política que envolva o mercado, mas não se limite a ele. Por isso é que eu não tenho ilusão com LAN House, que é um grande pequeno negócio, uma atividade muito saudável de pequenos empresários que acabam, em busca do dinheiro, dando acesso a comunicação. É uma atividade que a gente deveria enaltecer, incentivar e garantir estabilidade, já que o “grau de mortalidade” de LAN Houses é muito alto. Isso é uma coisa. Mas é preciso ter uma política publica do Estado, do governo federal. O governo tem que dar infra-estrutura de telecomunicação e Internet para o país. E ele está fazendo isso? Muito timidamente. Ele precisa cuidar da banda larga, que é uma questão urgente, e tem que ser disseminada a todos os lugares. Não é o fato de você ter acesso que te dará as mesmas condições que outras pessoas. O acesso a uma conexão discada não permite acessar nem o Youtube. É preciso a banda larga. Tem que negociar com estados e municípios, com escolas, mas não só para ter salas laboratoriais. Já ouviu falar em laboratório de informática? Essa é uma concepção muito equivocada. Há laboratório de química, que é para fazer experimento. A Internet não é simplesmente algo útil para a ciência, ela é uma rede de comunicação imprescindível. Eu tenho que garantir que a escola esteja conectada, eu tenho que criar processos de aprendizagem em rede. Eu acho que a grande solução é ter uma política pública e tentar fazer uma revolução educacional mesmo. Olhe para a cultura daqueles que construíram a Internet como uma rede colaborativa, não-proprietária, e veja que no núcleo dessa rede há elementos da contracultura norte-americana que se juntou com desenvolvedores de códigos, que se autodenominavam hackers. O Manuel Castells no livro Galáxias da Internet chama isso de subcultura hacker. Essa subcultura hacker, junto com a nossa cultura tradicional, é, sem dúvida nenhuma, um sinal muito bom para a gente melhorar a educação do país. Eu acho que a grande inovação está na fusão do pensamento hacker baseado na colaboração, superação de desafios, compartilhamento com toda essa nossa capacidade das nossas comunidades tradicionais. Tradicional não é atrasado, tradicional é como essas comunidades indígenas, do interior do país conseguem criar coisas fantásticas com poucos recursos. Essas práticas recombinantes, essa cultura do comum, a gente tinha que jogar isso na rede. Esse elemento somado a uma política pública, a gente podia fazer com que áreas do século 19 se transportassem para o século 21.

Qual o benefício para uma criança, na escola, aprender a mexer num computador usando um software livre? Mais tarde, não será requisito para emprego que ela saiba usar softwares do modelo proprietário?

Ensinar com software livre significa formar uma pessoa dando opções. Ela passa a aprender a funcionalidade, ela não fica restrita a um tipo único de interface ou design. Ela não é adestrada, ela aprende. Eu não conheço um caso de uma pessoa que conhece Linux e não consegue emprego. Eu conheço o contrário. Eu sou sociólogo e vejo técnicos de Windows aqui e descubro que conheço mais de informática do que eles. Isso é ridículo. A verdade é o contrário: o modelo proprietário retira do usuário a autonomia do uso da máquina, a inteligência; o livre faz o contrário. Se a Microsoft muda a versão do Windows as pessoas que vem do modelo proprietário já não sabem como usar, porque foram adestradas.
Você pode tanto dar condições ao jovem aprender hoje que software é mídia e não é simplesmente algo que tem que ser feito por um técnico, que se pode discutir funcionalidade e que ele precisa saber como funcionam os protocolos da Internet. Não tem a mínima condição confundir informatização com ampliação de um poder de monopólio que está perdendo força nos EUA, que tem que comprar o Yahoo para sobreviver, porque ele não tem a mínima condição de ficar de pé, porque é um modelo que não se amplia mais na rede. Eu estou informatizando meu país e vou fazer a sociedade ficar refém dessa plataforma de monopólio? Levar a sociedade ao mundo da informática é levá-la a ser prisioneira de um modelo de negócio de uma empresa de software norte-americana? Com muito mais facilidade hoje eu instalo o Ubuntu, aliás, muito mais fácil do que o Windows Vista, um fracasso total. Se você disser que o melhor navegador é da Internet Explorer, me desculpe, o melhor é o Firefox, que, por ser aberto, tem mais de 3.000 plugins de coisas fantásticas que eu posso conectar a ele. Tudo produzido por pessoas diferentes, do mundo todo, o cara na Nova Zelândia, na Índia, porque tem gente criando e disponibilizando para os usuários do Firefox. Já a Microsoft tem que criar tudo dentro dos seus funcionários.

Você presidiu o ITI (Instituto Nacional de Tecnologia da Informação) entre 2003 e 2005. Como você avalia a sua participação na esfera governamental pela implementação do software livre nas instituições públicas e como vê que avançou a implementação de políticas no sentido de ampliar o uso de softwares livre no Brasil?

Eu levei a idéia de montar o Comitê de Implementação do Software Livre (CISL), fiz um acordo que depois virou decreto, mas era um comitê de adesão voluntária, tinha por volta de 120 órgãos, e lá começamos a fazer uma série de mudanças. Acontece que havia muita resistência motivada pela operação do lobby, por exemplo, a Microsoft, que atua com escritório lá em Brasília. Eles atuam fortemente na esplanada, junto a alguns ministros que bloqueavam nossa ação. Como se tratava de algo estatal, eu pedi um decreto para que o padrão de uso de Tecnologia da Informação fosse o aberto. Foi aí o meu limite. Ou era isso ou eu não poderia continuar. Tive que sair. O fato de eu sair permitiu que se colocasse em pauta o problema do ritmo da implementação. O programa não parou, muitas coisas aconteceram depois. Foi interessante que o presidente Lula foi ao último Fórum Internacional de Software Livre (FISL) e ele me citou nominalmente e reconheceu os confrontos que nós tivemos. Ele disse “ainda bem que nós continuamos no caminho do software livre”. Depois da minha saída o programa avançou fortemente. Muitas coisas que iniciei continuaram e outras novas surgiram. Acho que o governo está longe de ter uma decisão sobre isso como a que eu queria. O Ministério de Ciência e Tecnologia, por exemplo, não tem linhas de incentivo para a produção de software livre no Brasil. Aliás, tem um projeto do deputado Paulo Teixeira, pelo menos 20% do fundo de informática deveria ir para desenvolvimento de software livre. Mas aí tem o lobby que age lá dentro. Sem esse recurso olha o que já é feito no Brasil, imagine com ele. Só que aí qual o argumento, extremamente falacioso: “ninguém impede que 100% seja para software livre, não há necessidade de ter 20%. Se forem reservados 20% para software livre, vão querer para games, para outras coisas”. Software livre não é tecnologia, é modelo; e há dois modelos: o livre e o proprietário. O que não é feito é por lobby, por resistência. Podemos avançar? Sim. O Lula podia fazer duas coisas: garantir grana do fundo para essa garatoda – explodiriam coisas espetaculares–; e garantir um decreto falando que o padrão é a tecnologia aberta. Padrão não significa exclusividade. A gente tem aplicações no governo que eu sou obrigado a instalar software proprietário para poder acessar. Tudo porque o governo não exige. Eu sou obrigado a participar de editais do CNPq e da Capes que só aceitam o formato proprietário. Pior que software proprietário, é o formato proprietário. Isso é muito grave. Eu não vou ter nada em papel daqui a 10 anos, as coisas estarão guardadas em dados. Se o formato desses papéis é propriedade de uma empresa, eu estou na mão dela até para ler um documento de 10 anos atrás.

É daí que surgiu o Protocolo de Brasília lançado em 2008 que estabeleceu como norma o uso, ainda que voluntário, de documentos em formato ODF (Open Document Format)?

Exato. O governo já apóia o ODF, mas, entenda, ele vai até a metade. É por isso que eu digo sobre as duas coisas que precisariam ser feitas. É claro que nenhum governo fez pelo software livre o que essa gestão fez. Mas ainda falta consolidar a ação com essas duas coisas.

No final de 2005, você disse que a inserção digital, no Brasil, ainda não era uma questão de política pública, mas que deveria ser. Como você avalia essa situação hoje?

O governo fez uma coisa muito interessante que foi incentivar o uso da Internet para a classe média baixa. Nós estamos tendo um crescimento muito grande em torno do acesso nessa área. Caiu o custo do computador, houve incentivo. Isso foi vital. Hoje o computador é o eletrodoméstico mais comprado, até mais que televisão. Isso é uma política clara de incentivo que o governo fez. Onde o governo patinou foi com a liberação dos recursos do FUST [Fundo de Universalização dos Serviços de Telecomunicações], que começou a desenrolar recentemente com esse plano de banda larga, mas ele deveria ser uma prioridade do chamado PAC. Teria que ver quais atividades podem ser feitas em redes e como levar emprego através das redes para todo o país. Tudo o que não é preciso ser feito presencialmente, quando se tem uma conexão com banda larga, pode ser feito em rede. Exemplo é o serviço de callcenter. Coloque isso em cidades no interior do Brasil, onde falta trabalho assalariado. Qualquer pessoa com um bom nível de ensino, você pode facilmente permitir que ela adquira destreza na rede e, assim, abrir 200 postos de trabalho lá para atendimento em telemarketing, como os EUA fazem há muito tempo. Quando a pessoa liga para reclamar de um supermercado no Texas, ela fala com um cara na Índia. Está na rede, é voz sobre IP. A rede permite que se crie várias oportunidades em lugares que têm pouca vocação econômica. A questão da banda larga é estratégica para o país.


Sérgio Amadeu da Silveira é sociólogo e doutor em Ciência Política pela USP. Implantou os Telecentros Comunitários em São Paulo durante a gestão Marta Suplicy, presidiu o Instituto Nacional de Tecnologia da Informação (ITI), entre 2003 e 2005; e coordenou o Comitê de Implementação de Software Livre (CISL) no Governo Federal. Desde então dá aulas na pós-graduação da Faculdade Cásper Líbero e é consultor do Instituto Campus Party Brasil. É autor de Software Livre: a luta pela liberdade do conhecimento e Exclusão Digital: A miséria na Era da Informação.