W. J. Solha
Flávio e o Testamento de César
As previsões dos fatos humanos - como as de Marx - geralmente alteram os resultados previstos, e essa é a intenção deste texto
Quando Maranhão escolheu Flávio Tavares para subsecretariar a pasta da Cultura (que tem, realmente, de ter C maiúsculo, pois a Paraíba é a Paraíba), pensou, certamente, num modo de superar ou pelo menos equiparar-se a Cássio Cunha Lima no que foi, durante algum tempo, o ponto forte de sua administração. 2010 vem aí e tudo pesa, inclusive o zelo com que o ex-governador e sua primeira-dama trataram os artistas e artesãos. Digo isso com a isenção de quem jamais solicitou financiamento algum para o FIC - a lei Augusto dos Anjos - e nem é artesão. Só um nome como o de Flávio poderia, mesmo, fazer frente à marca poderosa deixada por Cida Lobo quando na direção da mesma subsecretaria.
Essa nomeação é uma tacada política cujo acerto teve somente outras duas equiparáveis, na história mais recente do estado: a de Luiz Carlos Vasconcelos e, agora, a de Walter Galvão, ambas feitas por Ricardo Coutinho, para presidentes da Funjope. E Ricardo Coutinho também será páreo duro - e bote duro nisso - para o governador, em 2010.
Mas pra que raios serve a Cultura, num estado com tantas outras prioridades? Essa é uma pergunta fora de propósito numa terra em que já brotaram, talvez como seu maior e mais surpreendente motivo de orgulho, gente feito Sivuca, Celso Furtado, Jackson do Pandeiro, Zé e Pedro Américo, os irmãos Lira, Augusto dos Anjos, Walter e Vladimir Carvalho, Elba e Zé Ramalho, Bráulio Tavares e Shiko, Eli-Eri Moura e Zé Lins, Oliveira de Panelas e Jessier Quirino, Chico César e Ariano Suassuna, Marcus Villar e Zé Dumont, Marcélia Cartaxo e Sérgio de Castro Pinto, além de José Nêumanne, Antonio Dias, Lacet, o maestro Siqueira, etc, etc, incluindo-se nesse rol o Flávio Tavares, o Luiz Carlos Vasconcelos e o Walter Galvão.
Tudo isso me ocorre porque na gestão anterior de Maranhão fui encarregado de lhe entregar - no Fenart - um abaixo-assinado de trezentos pintores, atores, cineastas, poetas, romancistas e dramaturgos do estado - artistas de João Pessoa a Cajazeiras - apresentando-lhe o projeto, do então deputado Ricardo Coutinho, da que seria a equivalente estadual à municipal Lei Viva Cultura - que o próprio Ricardo, vereador, criara nos tempos de Cícero Lucena - e vi Maranhão, de repente, antecipando-se a mim, dizer à platéia que tinha uma surpresa para a nossa classe: uma lei, sua, que iria nos deixar a todos muito felizes, pois garantia financiamentos a fundo perdido a todas as atividades em que nos esfalfávamos e graças as quais o estado tanto brilha. Foi muito aplaudido, mas entreguei-lhe, sempre, quando ele saía da sala, o documento de que era portador, sentindo que a lei - dele - era uma réplica do testamento de César, em branco, que Marco Antonio exibe enrolado ao povo de Roma, ante o cadáver do grande Júlio. Coisa pra Shakespeare. Que sabia tudo sobre Maquiavel.
Lembro-me de que levei o relato ao jornal o Correio na manhã seguinte, um texto breve que terminava dizendo caber a nós, artistas, o acompanhamento da publicação da nova lei em Diário Oficial e a cobrança de seu cumprimento. Mas do jornal disseram-me, no outro dia, que ali não se divulgava nada que fosse contra o governador, coisa que pensei ter visto apenas no tempo da ditadura, quando certa vez dei com um cartaz, na parede daqui de O Norte, colocado pela Censura: "Não se publica nada sobre Dom José Maria Pires".
Que a escolha de Flávio Tavares - cuja combinação de talento, amor à terra, enorme simpatia e seriedade garantiram aprovação unânime à unção de seu nome - não seja outro rebento do maquiavélico gênio shakesperiano que, por estar sempre se reproduzindo no mundo, garante-lhe a eternidade.
Que eu - que sou sempre muito pessimista - esteja enganado.
W. J. Solha é dramaturgo, ator, poeta e romancista. É colunista do Jornal O Norte = wjsolha@superig.com.br