domingo, 18 de julho de 2010

FELIZANIVERSÁRIO TANINHA

Pedro Almodóvar
07.novembro.2004

Almodóvar chega a maturidade

Tania Menai, de Nova York

“Muitas situações vividas pelos personagens dos meus filmes refletem as mudanças da minha vida”, confessa um Pedro Almodóvar cinqüentão e de cabelos brancos ao comentar seu 15º filme, “Má Educação”, que abriu o Festival de Cannes deste ano, foi exibido no Festival do Rio e na Mostra de Cinema de São Paulo e estréia no circuito comercial brasileiro na sexta-feira, dia 12. O último Almodóvar traz para a tela temas como a pedofilia na Igreja e o transexualismo, mas o diretor faz questão de dizer que ele e o filme são “anti-Mel Gibson”. E explica: “Meu filme é sobre o poder da fé, assim como o de Gibson, mas o meu objetivo como escritor é ter empatia com todos os personagens. Amo personagens que estão tremendamente apaixonados e que dariam sua vida pela paixão, mesmo que, para isso, tenham de se queimar no inferno.”

Rendendo-se ao cinema noir, Almodóvar escolheu o mexicano Gael García Bernal – o Che Guevara de “Diários de Motocicleta “ – para viver três personagens em seu novo filme. Um deles é um travesti, que exigia de Gael quatro horas diárias de paciente preparação na sala de maquiagem. Outro ator conhecido – ainda que debaixo de perucas, saias, cílios e salto alto - é Javier Cámara, um dos protagonistas de “Fale com Ela” (2002), vencedor do Oscar de melhor roteiro original. Ao contrário dos filmes anteriores de Almodóvar, “Má Educação” não tem protagonistas femininas. Nem precisa.

Com um roteiro que mistura passado e presente, realidade e fantasia, “Má Educação” conta a história dos meninos Ignácio e Enrique. As crianças freqüentavam a escola primária, católica, na Espanha do começo da década de 60. Ainda pequenos, descobriram o amor – um pelo outro. Mas suas vidas foram marcadas pelo medo. O diretor da escola, Padre Manolo, pedófilo, assombrava a vida de ambos. Crescido, Ignácio escreveu uma história sobre o assunto. Enrique adaptou-a para o cinema. No final dos anos 70 – quando o padre já havia deixado a Igreja, estava casado e era pai de um filho –, o triângulo se restabelece. E a confusão também.

Nesta entrevista, que o apaixonado e falante diretor concedeu durante o Festival de Filmes de Nova York, Almodóvar ressalta que “Má Educação” não é um filme anti-clerical, fala sobre a relação entre sua vida e suas obras e revela a única regra fixa que segue como diretor: “Nunca dormi com nenhum ator dos meus filmes”. E conserta a frase: “Nem com atrizes”. Depois que pipocaram notas na imprensa brasileira sobre um eventual interesse de Almodóvar - que teria gostado muito de “Carandiru” - no ator brasileiro Rodrigo Santoro para o elenco do seu próximo filme, a reportagem de NoMínimo tentou confirmar a informação, mas, em Madri, o relações-públicas Javier Giner, da produtora do diretor, El Deseo, simplesmente afirma: “Que eu saiba, Almodóvar não viu Carandiru.”


Apesar de ficção, “Má Educação” se passa em uma Espanha real se baseia em fatos da sua infância. O quanto da sua biografia faz parte do filme?

Estamos falando de uma família que migra no início dos anos setenta, numa situação econômica quase de pós-guerra. Havia muita pobreza na Espanha. Apenas na segunda metade da década, a economia mostrou sinais de revitalização e transformou o país. A família de Ignácio, o menino protagonista, muda-se para Valência em busca de prosperidade. Na Espanha daquela época, os movimentos migratórios rumavam para a Catalunha – a Andaluzia imigrou inteira para lá - ou para os países bascos, que já estavam com uma economia mais madura. Muita gente também foi para a Alemanha. A minha família migrou de Castilla La Mancha, no sul do país, para Extremadura, que era um pouco melhor economicamente. Na época, a Espanha era um país bastante sombrio, devastado por uma grande repressão e uma ditadura ainda muito presente. Levaram-se 20 anos para que essa ditadura terminasse. Como o menino do filme, recebemos uma educação religiosa. Esta era a única opção – e, no meu caso, ganhei uma bolsa de estudo. Quando isso acontecia, agarrávamos a chance – era a única oportunidade de estudar. Este é o momento em que entramos no filme. Para mim, esta foi uma maneira de explicar o tipo de educação que recebi dos padres.

E foi uma má educação?

Em espanhol, “educação” tem dois significados – a educação acadêmica e a educação que designa os bons modos. Dada a educação que recebi, passada exclusivamente sobre a forma de culpa e castigo, acredito que seja um milagre eu estar aqui hoje dando esta entrevista.

Por que o senhor escolheu a cidade de Valência para este filme?

A ditadura acabou em 1975, mas começamos a respirar ares de liberdade apenas por volta de 1977. Valência era uma das cidades espanholas mais divertidas e mais abertas. Assim como Barcelona, Valência também era muito receptiva a todas as diversas condutas sexuais. Por isso, Ignácio, agora com tetas, decide ficar em Valência. Por outro lado, sua mãe, quando ficou viúva, foi viver com uma irmã do marido na Galícia, bem longe de onde viviam seus dois filhos.

O personagem de Padre Manolo também se originou na vida real?

Sim. Também tirei este personagem da minha biografia. Não conte para ninguém, mas, no colégio onde estudei, havia um sacerdote que tinha um verdadeiro harém de meninos - ressalto que eu não estava incluído. A cidade inteira sabia daquilo. Era um escândalo tal que o diretor do colégio teve de transferi-lo para um lugar onde não havia meninos pequenos, apenas adolescentes e adultos. A igreja nunca demite, apenas transfere. Dez anos mais tarde, encontrei-me com este padre nas ruas de Madri. Ele disse que tinha deixado a igreja e, para a minha surpresa, havia casado e tinha um filho pequeno. Minha impressão é de que a primeira coisa que estes padres faziam, ao deixar a igreja, era casar e ter uma vida normal. Mas depois acho que seus instintos sexuais acabavam voltando à tona acentuadamente.

É esta a virada do filme?

Se eu deixasse o filme simplesmente mostrar o abuso de poder de Padre Manolo sobre o menino Ignácio, o filme acabaria caindo em um certo maniqueísmo. O que mais me interessou era voltar ao Padre Manolo quando ele já não era mais sacerdote, quando já era marido e pai de um filho pequeno. Sem dúvida, é aí que o filme ganha sua tensão dramática. Este senhor reencontra seus dois alunos - Ignácio, transexual, e o Enrique, que tinha se transformado em diretor de cinema. E ambos o odeiam. Um deles escreveu um conto sobre o assunto, e o outro adaptou este conto para o cinema.

Então, ao seu ver, a história não se completaria somente com os acontecimentos da infância dos meninos...

Acho que o filme encontra sua natureza quando eles formam novamente o triângulo que havia se criado no colégio, mas, desta vez com um novo elemento: o irmão mais novo de Ignácio, interpretado por Gael. Tratei de mostrá-lo o mais jovem possível, um adolescente. A beleza e a atração do personagem de Gael representam para o padre o que aquele menino de que ele gostava na época da escola poderia ter sido na adolescência. Na verdade, aquele menino se tornou um travesti, mas o ideal que ele tinha em mente era a imagem de Gael.

O senhor acha que o padre da sua infância viu “Má Educação”?

Esta é uma pergunta que me faço todos os dias. Mas acho que ele viu, sim.

A Igreja se manifestou sobre o filme?

Não. Ninguém me procurou.

A cinematografia de “Má Educação” parece retornar aos primeiros anos da sua carreira. O senhor concorda?

Acho que foi uma boa idéia ter chamado José Luis Alcaine, o fotógrafo de “Mulheres à beira de um ataque de nervos” e de “Ata-me”. Não estou certo de que voltei no tempo. Mas acho que “Má Educação” é uma espécie de antologia de todos os temas com os quais me preocupo e que fizeram parte dos meus filmes. Trata-se de uma nova visão sobre um tema que já desenvolvi em um filme chamado “A Lei do Desejo”. Precisei fazer os 14 filmes anteriores para poder fazer “Má Educação”. Para se fazer um filme tão duro, não se precisa ter passado por uma vida tão difícil. Mas se deve ter um certo amadurecimento. Até porque, o final deste filme foi, sem dúvida, o mais duro de todos os meus filmes.

Como este amadurecimento o influenciou como diretor?

Os filmes que dirigi durante a juventude podiam ser classificados como comédias urbanas. A idade adulta me levou a fazer dramas intensos, barrocos. E agora a idade está batendo na minha porta – ainda que eu não queira abri-la, ela bate insistentemente. E isso tem me levado ao cinema noir, um gênero de filme que adoro e já queria ter feito. Mas, até agora, não me sentia suficientemente maduro para isso.

No começo, o senhor sempre filmou em Madri. Quando foi a primeira vez em que saiu da cidade com os seus filmes?

Foi em “Tudo Sobre Minha Mãe”. Levei o personagem para Barcelona, onde fica o bairro Montserrat. Tratava-se de uma mulher que se sentiu acolhida naquele lugar, depois de uma imensa dor. Ela vai atrás do pai de seu filho – o pai era um travesti, chamado Lola. Na época em que Lola colocou os seios, no final dos anos 70, Barcelona, muito mais do que Madri, era o lugar onde os travestis começavam os tratamentos para tirar a barba. Depois iam a Paris, colocavam seios, e voltavam a Barcelona – trabalhavam no bairro chinês, que acolhia calorosamente todos os travestis que chegavam com seios novos. Inclusive, entre os adolescentes de Barcelona, há uma tradição que passa por ter visitado alguma vez el campo - não é um campo de verdade, mas é perto do estádio de futebol. Lá, eles têm uma iniciação chamada “mamada rápida”. Estou falando sério. Barcelona é uma cidade que oferece muito mais ao mercado transexual do que Madri – há uma grande clientela.

E Lola foi baseado em algum personagem real?

Sim. Tratava-se de um homem casado (com uma mulher), que foi para Paris, colocou seios enormes. Dois anos depois, retornou a Barcelona para os braços da mesma esposa. Ela levou alguns dias para se acostumar com os seios do marido, mas acabou se acostumando. Continuaram casados e chegaram a abrir um negócio juntos – um bar na praia. Ele desfilava de biquíni e atirava-se em todos os meninos que passavam. Mas, quando a esposa vestia minissaia, ele se irritava e a proibia. Este é o melhor exemplo de machismo que já vi.

[ by Tania Menai ]