quarta-feira, 2 de novembro de 2011

INCENDIOS E A MULHER QUE CANTA

Ana Adelaide Peixoto - www.wscom.com

" A palavra pertence ao homem e o silêncio pertence à mulher" (Rose Marie Muraro)
"Num mundo onde a língua e o nomear significam poder, o silencio é opressão, é violência". (Adrienne Rich)


Quem canta seus males espanta!
As mulheres gostam de cantar. As lavadeiras cantam quando lavam roupa. Minha secretária canta lavando a louça. Minha mãe cantou a vida toda por entre talos de coentro ou decepções maiores....; eu cantarolo debaixo do chuveiro, ou nas estradas de Santos, digo da BR , ouvindo Marisa Monte, Chico Buarque ou Tulipa Ruiz.
Pois é cantando que a personagem do filme Incêndios, enfrenta a sua dor limite, se é que podemos definir essa dor, a do estupro, e seu algoz, causando-lhe ainda mais ira e furor.


Nua e de Costas para o Mundo
Incêndios, 2010, indicado ao Oscar de Melhor filme estrangeiro 2011,esse belíssimo filme canadense /francês (dirigido por Denis Villeneuve, o mesmo de Invasões Bárbaras , e com roteiro baseado na peça do libanês Wadji Mouawad, tem um título interessante. A princípio associamos à uma cena incendiária de um fuzilamento sumário quando da guerra de cristãos e muçulmanos no Oriente Médio. Em meio a um redemoinho de fumaça negra, uma mulher senta no vazio da terra, e chora. Um outro incêndio acontece, o do orfanato, um lugar destruído pelo fogo ardente, onde uma mulher de turbante também chora. Mas o maior incêndio talvez seja o incêndio metafórico causado para apagar ou re-acender a vida de Nawal Marwan (lindamente interpretada pela atriz belga, Lubna Azabal), personagem principal, que ao morrer, deixa um testamento inusitado para os seus filhos gêmeos, Jeanne(Mélissa Desormeuaux-Poulin) e Simon, que ouviram incrédulos: “Quem não cumpriu uma promessa não merece epitáfio nem lápide. Me enterrem nua, sem orações, sem caixão, e de costas para o mundo.”


Incêndios: Rastros e Restos


Filmado na Jordânia, Incêndios é um filme politizado e globalizado. Fala não somente das guerras da década de 60, da intransigência religiosa e dos refugiados, mas é também um filme sobre os filhos desses imigrantes, nascidos em países estrangeiros, que não falam a língua dos avós, não conhecem a cultura dos pais, e, em determinado momento, se perguntam (ou não) qual é a sua identidade - se é que existe uma, ou mesmo se eles têm uma. Daí a metáfora do incêndio: ruínas, apenas pequenos rastros de algo que foi destruído no horror e selvageria.
O filme é contado a partir de capítulos, e fazendo uso de passado presente entrecortado pela estória e por recortes interessantes. O ir e vir, o vai e volta, segue costurando os rastros e vestígios deixados ou não, mas que como o próprio advogado diz: “A morte nunca é o fim de uma estória.”
Começa a jornada. Saímos de 2010 e voltamos ao final da década de 1970, no começo da Guerra Civil do Líbano. Aos poucos, mais interrogações surgem em Jeanne, a filha. Acompanhamos o tempo presente, com ela buscando os traços da mãe. O passado entra com inserções de flashbacks, descobrimos um pouco mais do que Jeanne sabe.No elenco, destaque para Melissa como a filha e Rémy Girard, o doente terminal de As Invasões Bárbaras, como o tabelião.


“A infância é uma faca enterrada na garganta”
A cena de abertura é um deserto; um lugar a esmo, cinza e monótono e silencioso , somente com uma palmeira própria dos desertos. A estória começa num vilarejo no meio do nada, de um país em guerra. Tudo quase em câmera lenta e silenciosa que passeia por trás de uma janela, mas com uma vista escura e triste. Um canto desolador . Escuridão. Meninos raspam o cabelo, olhos esbugalhados. Um lamento que se mistura com a música belíssima do Radiohead. O ponto de vista é o de pés sujos e descalços. Calcanhares. E um close específico vem ao foco, com uma tatuagem de três pontos, para que um par de pés não fosse perdido no mundo. Um rosto fixa a câmera, com olhos negros e assustadores, que só no final entenderemos esse epílogo. Questões como a honra, a maternidade, a morte, a procura, o exílio, o estupro, o acaso, o destino, e finalmente o re-encontro disso tudo, num silêncio que será quebrado e uma promessa que será cumprida, darão a condição de horror dessa personagem, que somente ao final terá seu nome exposto ao sol.


Matemática Pura x Intuição
Dois Envelopes, um endereçado ao pai e um outro ao filho . Uma busca. Problemas insolúveis e um reino da solidão. Mas todo problema tem que ter um ponto de partida, e os gêmeos filhos de Narwan reagem diferentemente aos problemas. Um reage com ceticismo, negação e raiva. A outra com a compaixão, a perplexidade e a intuição, afinal sem esse sentido não existe matemática, lhe adverte seu mestre. Nunca se resolve um problema pela variável desconhecida. E lá se foi Jeanne para o Ponto de Partida: Der Om, Povoado em Fouad, Líbano, em busca de uma pista sobre a sua mãe, que pelo visto mais que uma desconhecida. A cada descoberta, um horror maior.
Fiquei a pensar novamente no texto de Rose Marie Muraro, “Por uma nova ordem simbólica”, onde ela diz com uma autoridade constrangedora: “As mulheres estão construindo uma nova ordem simbólica, na qual o ´grande outro´ é a vida (viver e deixar viver), e ajudando a desconstruir a atual ordem universal de poder.” Penso também em como as guerras atuais conseguem ser ainda mais assustadoras e violentas, se é que podemos medir as guerras tão pouco. Quando assistimos filmes das guerras mundiais, a violência farta gira em torno do holocausto, nada mais violento. A Escolha de Sofia como violência mor, e a Lista de Schindler, só para citar dois dos meus favoritos. Mas nessas novas guerras do final do século XX, não sei se por serem mais próximos, sinto-me ainda mais violentada, física e emocionalmente (Conferir um outro filme: A Vida Secreta das Palavras).


Uma Piscina – Um Mergulho = Calar-se
O filme é costurado por rimas visuais: Filha e mãe, uma que vai outra que vem – todas duas procuram, uma o filho, a outra a mãe; os caminhos no meio das areias bege do deserto, um ônibus que está sempre a viajar, a música/lamento que toca, a outra que canta, e uma piscina. A piscina, setting muito usado no cinema como lócus de mistério (O Grande Gatsby, Swimming Pool), mas no caso de Incêndios, lugar onde mãe e filha vão nadar. Lugar aparentemente do espaço do cotidiano, mas que se mostra o lugar dos mergulhos profundos e das revelações, quando a dor já não é suportável. É na piscina que a filha nada. Lembrei de A Insustentável Leveza do Ser, com Juliette Binoche nadando nas piscinas de Praga. Depois, os gêmeos nadam. Nadam em câmara lenta. Nadam talvez em busca da vida, pois tiveram que nadar muito para não se afogarem na curva do rio. Depois, quando sabem de toda a verdade sobre nascimento e origem, também nadam; nadam no escuro e se abraçam na fluidez da água, para que possam agüentar a dureza das descobertas. Um retorno ao útero materno e suas dores do parto e da rejeição. Toneladas de silêncios quebrados. A escritora americana Zora Neale dizia que: “Não existe agonia maior do que guardar para si uma estória não dita”. E é na piscina onde Narwan faz sua descoberta maior. E se cala para sempre, deliberadamente. Nesse seu mergulho, não há mais nada para dizer à vida, a não ser a recusa da existência pelas cartas aos filhos e ao pai.


Narwan é a imagem da dureza,da coragem, e da cantoria. É a puta da cela 72, sem nenhum direito a um quarto todo seu. Como não pensar no Porteiro da Noite com Dirk Bogarde e Charlotte Hampling, também aprisionados a lugares sombrios e violentos do/pelo sexo. Não consigo esquecer o rosto dessas mulheres sujeitas à violência extrema. E , particularmente gosto do tema do ser humano no seu limite máximo frente às tragédias (por isso gostar tanto do diretor mexicano Alejandro Iñárritu (21 Gramas, Babel, Amores Brutos, Biutiful). Emociona-me por demais ver o rosto de uma mulher assim a cantar como forma de resistência. Como não lembrar do filme Preciosa, que a cada estupro e violência praticada pelo próprio pai, Precious se imaginava ouvindo discoteca, desfilando fashion, colorindo seus delírios para agüentar a dor que não ousa dizer o nome: o insuportável! mas cuidado: “O não-nomeado não deve ser confundido com inexistente” (Dicionário Feminista sobre o Silêncio). Mas, em Incêndios, tudo é pior e cinza: a prisão, a cela 72, a perda do filho, a guerra, a sujeira, a total solidão e identidade perdida, um disfarce, entre a cruz dos cristãos e um véu de muçulmana para despistar o inimigo, e a morte. Um terço, um choro, um grito, um vento e o fim do mundo. Lugar onde só as árvores assobiam. Sua avó lhe adverte: “vá estudar, aprender a ler, a pensar, para escapar da miséria”. Um parto, um corte, uma marca nos pés, e um olhar para não lhe perder de vista: Vou reencontrá-lo. Eu prometo!


O vento que assobia
A trilha sonora, Radiohead, me levou aos tempos de infância onde eu ficava dançando Naguila Hava e imaginando ventos árabes e distantes no meu inconsciente. Sensação que, anos mais tarde, re-vivi chegando à ilha de Santorini numa noite estrelada, e por entre uma brisa fresca, vi o azul do Mar Egeu de perto, e ouvi música grega ao amanhecer. Também em Sevilha, por entre aromas das laranjas, música flamenga com Paco de Lucia; ou mais ainda, atravessando o Canal de Bósforos na Turquia, e comprando uma calça Saruel de duas ciganas, por entre talos de tâmaras....Minha alma oriental do exotismo longínquo, fala alto dentro de mim, e vai de encontro quando assisto a um desses filme, que transforma meus amores por um Bazar de nome Araby Joyceano, em uma barbárie de uma terra nada santa, onde as mulheres são suas principais vítimas, e mesmo assim, cantam.


O Sul – O Lugar dos ventos uivantes
O Sul, toda hora mencionado. Refugiados, fronteiras e um segredo: “Você não é bem-vinda aqui”, lhe dizem as mulheres do lugarejo. Uma filha que procura um pai e nem sabe quem é a mãe? Toda a rigidez das mulheres árabes frente às próprias mulheres. As mulheres e os chás. A prisão do Sul foi o destino de Narwan que, queria ensinar ao inimigo o que a vida lhe ensinara. Na prisão, a câmera foca sempre os pés; tantos pés ensangüentados. Um bicho acuado entre quatro paredes, um arame farpado, um grito e um cantar.. Do lado de fora? Uma cor ocre, um camelo, uma ala de mulheres, 13 anos sendo vigiada, um murmúrio, murros na barriga, um deserto de lágrimas, um silêncio, uma pista, o número 72 – a mulher que canta! “Por vezes, é melhor não saber de tudo”.


Um mais Um = Console-se
Um exílio finalmente . Seus filhos são seus filhos e da ânsia de amar, já ouvi isso desde sempre. Nihad de Maio, chegou na primavera, não abril - o mês mais cruel de T. S. Eliot, mas maio de Maria e das flores que não tem a chance de desabrocharem para à vida. O Canadá, esse lugar multicultural, multiracial para onde os ventos fazem a curva não mais de uma piscina, mas das terras distantes, geladas e também ensolaradas. Nihad de Maio, um dia ouviu algo ou entendeu algo, e teve seu caminho que transpassou-lhe o peito certeiro. Procurou um alvo a esmo. Um louco. Um mártir. Queria sua foto no jornal pelos quatro cantos do mundo.
Novamente a matemática pura, onde um mais um pode ser um. O horror da verdade. A dor do deserto e da devastação. A dor do inverno e do frio dos galhos secos. Hoje, Nihad de Maio limpa vidros, transforma o opaco em transparente, para depois virar opaco novamente. Um milagre do reconhecimento: “O silêncio vem sempre antes da verdade”. A puta do 72. Console-se!


Ao final, uma promessa: quebrar a corrente de ódio. E uma certeza de que o amor pode tudo. Que a vida é mais importante, o afeto e a constatação de que do amor se pariu, do amor se viveu, e pelo amor se transforma.

Cantando sempre: Hava Naguilla Hava!

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